Carros alinhados em uma grande
avenida com pouco movimento, os roncos dos escapamentos quebram o silêncio da
noite tranquila, ecoando sobre a estrada. Faróis iluminam o asfalto, enquanto
os pilotos se concentram para conseguir o melhor rendimento possível. Após o
sinal de largada, os roncos se transformam nos pneus gritando e tentando
tracionar o carro no asfalto, jogando toda a potência dos motores preparados
para o chão. A sensação de liberdade a 200 km/h em busca de apenas um objetivo:
chegar primeiro, deixando todos os outros carros e pilotos comendo poeira.
Essa era uma das rotinas vividas
pelo estudante de Engenharia Fernando Sousa, 21 anos. Vindo de uma família de
classe média, Fernando conta que seus interesses por carros começaram com os
filmes da saga Velozes e Furiosos e que, após completar 18 anos e ter sua CNH
em mãos, seu contato com esse mundo só aumentou: “Quando comprei meu primeiro
carro, fui conhecendo o pessoal na faculdade e também nas ruas. Às vezes fazia uma
‘brincadeira’ com alguém e acabava trocando contatos. Assim fui conhecendo as
pessoas e me enturmando”. Brincadeiras, segundo Fernando, era a forma que os
participantes usavam para se referir aos rachas.
As corridas de rua, ou rachas,
acontecem com frequência em todo o Brasil. Muitos encontros de carros noturnos
têm esta finalidade, juntar os apaixonados por velocidade e motores ocasionando
disputas de ego para descobrir quem é o melhor piloto ou tem melhor o veículo.
Além desses encontros, acontecem também as disputas casuais em que pessoas que
gostam dessa prática acabam se encontrando na rua e praticam o racha, em meio a
veículos e a luz do dia.
Fernando diz que a prática desse
ato leva a uma sensação muito boa, de liberdade. No momento das corridas, as
consequências e problemas que podem ocorrer são deixados de lado e, em seu
lugar, resta um desejo de não perder para os demais.
Porém, hoje, Fernando mudou seus
hábitos: “Infelizmente, antes de eu me tocar de o quanto isso poderia ser
sério, acabei sofrendo um acidente e destruí meu carro. Na hora do acidente foi
isto que pensei: ‘Acabei com meu carro’. Porém existem outros fatores em que
parei para pensar após o acidente, enquanto esperava retirarem o carro: eu
poderia ter atropelado alguém, poderia ter batido no carro de outras pessoas,
machucado ou até matado. Nessa hora, acredito que para muitos, passe como um
filme na cabeça e o ‘e se’ acaba pesando, fazendo-nos refletir sobre aquelas
atitudes que temos sem pensar e que, em apenas segundos, podem mudar nossas
vidas para sempre ou até mesmo tirá-las de nós.”
Após o acidente, Fernando não
perdeu sua paixão por carros, somente trocou por algo mais responsável e seguro
em eventos fechados. “Conheci os eventos através de amigos que gostam de carro.
Muitos que praticavam racha nas ruas acabaram mudando o ‘foco’ de seus carros e
começaram a andar nas pistas. Os eventos têm total infraestrutura com
segurança, ambulância e ambientes controlados. Nas ruas podemos nos machucar e
machucar pessoas a todo momento.”
EVENTOS NO BRASIL E NO EXTERIOR
Esses eventos ocorrem por todo o
território nacional e são chamados de Track Days (eventos em autódromos, onde o
principal foco é ter seu tempo de volta cada vez mais baixo e sua disputa é
consigo mesmo) ou de Arrancada (disputa entre dois carros em linha reta,
geralmente de 201 ou 402 metros). Os custos para participar desses eventos, com
total infraestrutura e segurança, podem variar entre R$ 200,00 e R$ 2.000,00
dependendo do tipo. Nesses eventos, o participante entra com seu carro de uso
normal, passa por uma inspeção dos itens de segurança para ser considerado apto
a andar. Em sua maioria, os eventos contam com briefing (orientações gerais) e
instrutores qualificados para dar dicas de como funciona o evento e de como se
comportar com seu carro durante sua participação — orientações sobre a pista,
sobre como deixar carros mais rápidos e ultrapassar sem riscos, tipos de
bandeira e informações básicas que o participante precisa saber.
Um dos organizadores desses
eventos no Brasil e mundo a fora, Guilherme Santiago, conta que antigamente a
Arrancada era muito insipiente, pouco conhecida, e que hoje a realidade para
ambos eventos é totalmente diferente. A empresa de Santiago realiza eventos
todos os meses, de modo que uma das frases muito utilizadas, “eu acelero na rua
por falta de opção”, não é mais válida. “Você pode pegar seu carro de rua
normal, seja ele esportivo ou não, levar para o autódromo, acelerar em local
seguro sem preocupações de atropelar pessoas, com áreas de escape generosas,
sem arvores ou postes”, diz Santiago.
“A princípio, não podemos ser
falsos moralistas e hipócritas: quem nunca deu uma acelerada na rua com o
carro, especialmente quando se é mais jovem, um pouco mais inconsequente e
recém habilitado?”, questiona ele. “Na minha época, por exemplo, não existia a
opção de você acelerar o carro no autódromo. Nem se imaginava que iriam ocorrer
os Track Days, como já ocorrem há 20 ou 30 anos em países europeus e nos
Estados Unidos. No Brasil mal se falava em eventos de pista a não ser os
profissionais”, diz.
Fora do Brasil, os interessados
têm mais opções. A exemplo da Alemanha, onde a pista de Nürburgring tem
abertura praticamente diária, o participante que deseja andar nos seus 20,832km
de extensão deve apenas comprar o RingCard (como um cartão de crédito) e pagar
pelo número de voltas que deseja percorrer, entrando na pista com seu veículo.
Existem até locadoras especializadas no local, onde você pode alugar um veículo
preparado para se divertir. É uma forma de o governo incentivar a prática
segura do esporte.
Segundo Santigado, nossa
realidade é bem diferente: “No Brasil, a maior dificuldade de um organizador
são os trâmites burocráticos aliados aos altos preços de aluguéis dos
autódromos. Este é nosso maior problema para se fazer um evento hoje: o valor
cobrado para aluguel. Os Track Days têm crescido bastante no Brasil, nos Estados
Unidos e na Europa, inclusive nos Estados Unidos o próprio governo incentiva
esse tipo de evento, fornecendo para os organizadores ambulâncias, carros de
bombeiro e polícia. Então você acaba tirando esse custo do evento, barateando a
inscrição. No Brasil, ainda não estamos nesse nível. Mas estamos crescendo cada
vez mais e isso é muito bem-vindo; torcemos para que continue assim pois essa é
uma modalidade muito bacana, aguardamos que o crescimento continue e que mais
pessoas tenham acesso e possam participar”.
OPORTUNIDADES DE MERCADO
Esse tipo de eventos também acaba
gerando mais receita para quem trabalha na área de preparação automotiva.
Segundo o preparador e comerciante de acessórios Ronaldo Lemos, da AFR
Performance, o mercado acabou sofrendo mudanças ao longo das transformações dos
eventos e a demanda de preparação dos veículos de rua.
“Antigamente, nossas preparações
eram limitadas e contavam com poucos recursos nacionais. Para se ter um carro
rápido e competitivo, o dono tinha que investir muito dinheiro e, mesmo assim,
o resultado não era confiável pois elevávamos as potências dos carros em 200% e
as quebras se tornavam frequentes. Muitos desistiam de preparar seus carros por
conta das dificuldades de andar com os veículos nas ruas. Hoje, além de locais
seguros e regulamentados para a prática, o mercado nacional e de importação
cresceu muito e nós temos ótimos produtos disponíveis, facilitando nosso
trabalho e aumentando a durabilidade dos componentes e do próprio carro”, diz.
Além disso, ele acrescenta que os
fabricantes de veículos também têm investido muito em tecnologia, e com a
entrada do downsizing (termo utilizado pelos fabricantes para motores de menor
cilindrada, porém sobrealimentados ou, como popularmente chamados, turbinados)
é possível também elevar o nível das preparações. “Há dez anos, para se tirar
300 cavalos de um motor, era necessário um investimento de pelo menos R$ 20.000,
em meio a muitas dificuldades, com pelo menos dez dias de trabalho. Hoje, com
R$ 5.000 é possível extrair esses mesmos 300 cavalos, com muita mais segurança
e durabilidade, em apenas três horas de serviço”, conclui Ronaldo.
Texto: Thiago Afonso - Agência Experimental de Jornalismo (AgênciaJOR/Uniso)
0 comentários:
Postar um comentário