“A sociedade precisa parar de pensar que o surdo precisa andar com um intérprete como se fosse uma bolsa”, diz a fundadora da ONG
“Quem vem para a associação sente
uma paz e um amor muito grande”, conta Maria Ângela de Oliveira, professora
universitária de Matemática e Língua Brasileira de Sinais (Libras) e fundadora
da Associação do Amor Inclusivo (AAI). A entidade não tem fins lucrativos, foi fundada
em dezembro de 2017, na Vila Progresso, em Sorocaba, e tem o objetivo de
ensinar e capacitar pessoas com alguma deficiência, atualmente atuando com
surdos e dois cegos.
Início
Maria Ângela conta que
conheceu a Língua Brasileira de Sinais em 2006. Ela era catequista na igreja
católica e nesse ano teve sua primeira catequisanda surda, assim, começou a
aprender a língua para poder conversar com a jovem, na época, com 22 anos.
“Durante esse processo eu
percebi as habilidades que ela tinha e senti que eu devia incentivá-la a entrar
no mercado de trabalho. Ela era babá e dizia em língua de sinais para mim, que
tinha nascido só para cuidar de bebê e de casa e eu vi o potencial dela”,
relata a fundadora da AAI.
A partir daí, Maria Ângela
passou a ensinar o básico de informática para a jovem e conseguiu introduzi-la
no mercado de trabalho. “Aí eu comecei e outros surdos foram surgindo no meu caminho.
Na minha casa eu comecei a ensiná-los matemática e (alfabetizar) aqueles que
não eram alfabetizados, tanto na língua portuguesa quanto na língua de sinais,
porque tem alguns que não sabem Libras”, diz.
Em 2011, a professora montou
um Laboratório de Ensino Multidisciplinar (LEM), que era um lugar maior que sua
casa. No ano de 2014, O Santuário Santa Filomena, localizado no Jardim Maria do
Carmo, estava ensinando Libras para as missas e os coordenadores ofereceram um
espaço maior do que Maria Ângela já tinha. “Fui para lá, mas só deu para ficar
até o ano passado (2017), porque a gente começou a ganhar máquinas de costura,
teclado, violão e quando chegaram três computadores não tinha mais onde
guardar”, conta.
“Aí foi a hora em que eu
senti no coração para ter a coragem de sair, alugar um espaço e regularizar a
situação, porque até aí era aquela coisa bem caseira, de coração mesmo. E ao
alugar esse espaço onde estamos, eu precisei registrar a associação. Hoje, ela
é toda regularizada, tem o CNPJ, inscrição municipal, porque ela está crescendo
e até para a gente receber ajuda financeira precisa ter toda essa formalidade”,
explica.
Oficinas
A associação conta com
diversas oficinas, como artesanato, aulas de música, pintura, capoeira, teatro,
dança, matemática, língua portuguesa, língua de sinais, entre outras. Todas as
aulas são ministradas por voluntários.
Surdos participam da oficina de teatro |
Na hora da oficina de música,
Jorge Roberto, de 64 anos, que é surdo e alfabetizado, pega o violão e diz, com
um sorriso no rosto que, com o instrumento longe do corpo não sente nada, mas,
ao colocá-lo junto ao corpo, quando toca as cordas ele consegue sentir o som.
Sonia, de 64 anos, também
nasceu sem escutar e diz que suas oficinas preferidas são as de pintura, costura,
tricô e teclado.
Maria Ângela também conta que
a forma de alfabetizar um surdo é diferente de alfabetizar alguém que ouve.
“Para o surdo eu preciso mostrar a imagem, o que é concreto, escrever a palavra
e antes de escrever eu trago o objeto em Libras para depois ensinar a língua
portuguesa”.
Para quem pergunta qual é a
importância de os surdos saberem o português, ela explica que é pelo fato deles
viverem em uma sociedade ouvinte. “Tudo é escrito. Eles leem lábios, então a
gente incentiva as pessoas ouvintes, que vem caminhar conosco a falar e usar as
mãos simultaneamente, porque conforme os surdos vão lendo os lábios, eles
passam a ler o português corretamente”.
A professora conta que um dia
chegou uma senhora cega e perguntou se ela ensinava violão para surdo e, ao
receber uma resposta afirmativa, perguntou se ela ensinava para cego também.
“Ensino”, respondeu Maria Ângela.
“Aqui, além da gente
incentivar os deficientes, nós somos incentivados, porque quando eu falo de
desenvolver metodologia para eles, tudo isso vem como aprendizado. Quando chega
um cego e diz: ‘você pode me ensinar?’ Eu penso que nunca aprendi braile, nunca
aprendi como tocar violão para um cego e a gente passa a ir atrás. A gente
passa a ser pesquisador nessa área também e isso dá uma satisfação muito
grande”, relata a educadora.
Assistidos falam sobre o prazer de aprender
Sônia e Jorge conheceram o
projeto de Maria Ângela por meio da missa interpretada na Catedral
Metropolitana de Sorocaba. Ela em 2012 e ele em 2014, e os dois acompanharam de
perto a conquista do novo espaço, onde a AAI funciona hoje.
Jorge mora em Piedade e frequenta
a associação todos os sábados. Ele conta que estudou até o 2º ano do Ensino
Médio, mas saiu porque não conseguia entender nada do que era ensinado, já que
não havia um ensino próprio para surdos. É o mesmo caso de Sônia, que estudou
até a antiga 8ª série do Ensino Fundamental.
Com um brilho no olhar e um
sorriso no rosto, os dois contam o quanto o trabalho da Associação do Amor
Inclusivo é importante na vida deles e de todos os surdos.
“Os surdos e todos os deficientes
precisam aprender”, diz Jorge. Sônia complementa, “é importante aprender
português e muitas outras coisas”.
Para Maria Angela, todo esse
trabalho é importante porque inclui os surdos na sociedade. “Quando eu consigo
ver um surdo que passou por nós entrando em uma empresa ou voltando a estudar é
uma grande realização. Quando vemos aquele que chegou sem saber nada, passamos
a ensinar um pouco e depois encaminhamos para a Educação de Jovens e Adultos
(EJA), eu como professora fico muito feliz”, emociona-se Maria Ângela.
Sociedade
Uma das dificuldades que
Jorge e Sônia encontram no dia a dia é o fato da família de ambos não saberem
Libras. Apenas o sobrinho de Jorge e a neta de Sônia, que são crianças, sabem
um pouco da Língua Brasileira de Sinais, porque eles estão ensinando. “Quando
fico doente, a minha filha precisa ir junto ao hospital, porque como o médico
não sabe Libras ela precisa ir para falar por mim”, relata Sônia, que também
tem um filho surdo.
Jorge trabalha há nove anos
na Prefeitura de Piedade escrevendo o patrimônio, notas fiscais e multas. Ele
conta que até hoje não tem intérprete e precisa ficar lendo os lábios das
pessoas. “Mas tem palavras que são difíceis e eu não entendo”, diz.
Maria Ângela conta a história
de Moisés, um surdo que frequenta a Associação. Ela diz que ele tem uma
habilidade com ferro e que faz vários objetos com o material. Durante uma
conversa, ele acabou mostrando uma foto de um carrinho que tinha feito e ela
resolveu fazer uma exposição na AAI. “Aí ele renasceu, porque nós começamos a
vender as peças dele. Fazia um ano que ele não tinha vendido nada. A gente
começou a vender, a incentivar e hoje ele não para de fazer as peças”.
Obras produzidas por Moisés, participante da AAI |
Ela diz que esse é o objetivo
da Associação, que todos os alunos que passem por ela desabrochem e que as
pessoas vejam o potencial que eles têm. Incentivar aqueles que já sabem o
potencial que têm e aqueles que ainda não descobriram.
“Nós não temos dó deles,
porque nós brasileiros, a nossa cultura é olhar para um deficiente e ter dó. É
errado, nós precisamos olhar para ele e perguntar, poxa, ele não escuta, não
vê, não fala, não tem os braços, o que eu posso fazer para que ele perceba o
potencial que ele tem?”, salienta Maria.
Ela complementa dizendo, “é
encantador poder ajudar o outro, quantas vezes eu estou no hospital e chega um
surdo e eu vou ajudar, porque enfermeira não sabe. A sociedade precisa parar de
pensar que o surdo precisa andar com um intérprete como se fosse uma bolsa. O
surdo tem direito, é lei que todo lugar tenha um intérprete”.
Voluntários
“No momento nós estamos
vivendo com os voluntários, a gente pede ajuda de várias áreas, pode ser
professor, alguém que faça manutenção etc. Uma vez caiu um fio e nós ficamos
uma semana sem conseguir um eletricista que pudesse vir no sábado, porque nós
não temos como pagar. Toda arrecadação mensal que fazemos, com rifa e pedindo,
é para pagar o aluguel, água e luz que são as coisas que precisamos no
momento”, conta Maria, ressaltando a importância dos voluntários para a causa
Para ser voluntário é preciso
preencher um cadastro no blog da Associação: aainclusivo.blogspot.com
Língua Brasileira de Sinais não é obrigatória em todos os cursos
graduação
Desde 2005, o Ministério da Educação
(MEC) colocou como obrigatório o ensino da Língua Brasileira de Sinais nos
cursos de Pedagogia, Licenciatura e Fonoaudiologia. Mas quem trabalha na área
aponta que não é suficiente. “Não é só na escola que eles vão viver a vida
toda, não é só no consultório e fonoaudiólogo que eles vão”, acentua Maria
Ângela de Oliveira, professora universitária de Língua Brasileira de Sinais
(Libras) e fundadora da Associação do Amor Inclusivo (AAI).
Ela diz que o curso de Jornalismo
na Universidade de Sorocaba (Uniso) é pioneiro em todo o Brasil a ter Libras
como matéria obrigatória na grade e que seria muito bom se isso se tornasse
realidade em todos os cursos. Ela comenta que, na Uniso, a matéria é optativa
para os demais cursos, mas há faculdades em que não há nem esta oportunidade.
“Como optativa, muitos alunos
dos cursos em que não é obrigatório, chegam lá caindo de paraquedas porque
tinham uma folga na grade. E depois de um mês eles falam, ‘nossa professora, eu
não tinha noção do que era essa disciplina, que bom que eu estou aqui’”, finaliza
a professora.
Texto e fotos: Marcelo Gomes - Agência Experimental de Jornalismo (Agencia/JOR Uniso)
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